Simplicíssimo

Hoje (10)

2007-01-09

Boas notícias: o JSS está fora de perigo. Afinal, segundo ele
próprio afirmou, estava apenas a curtir uma das muitas carraspanas
que tem apanhado ao longo da sua vida. A espuma que lhe saía da
boca era apenas tinto fermentado, e não sangue como se chegou a
pensar. Todas as análises que lhe fizeram revelaram que tinha ainda
sangue suficiente no álcool para poder sobreviver por mais uns anitos.
Amanhã já vai ter alta, pediu-me para lhe ir comprar um frasco de
tintura à farmácia, e eu fiquei estupefacto com o à-vontade com que me
diz isso à frente das outras pessoas.
– Para o pé-de-atleta? – perguntei.
– Qual pé-de-atleta, qual carapuça. É para me passar a ressaca de
ontem. Só então compreendi que a tintura dele era outra, bem diferente
da minha. Tirei então o frasquinho do bolso e perguntei-lhe, de raspão:
– Isto é teu?
O JSS quase que ia tendo mais um ataque, ao ver o frasquinho de
tintura que eu tentava esconder dos outros doentes da enfermaria e
mostrar apenas a ele. Ficou branco que nem um cadáver, mas quando
regressou ao seu normal, disse:
– Pensei que me tinha visto livre de vocês, mas estou a ver que
não me deixam em paz. Confesso, deitei fora o frasco sem me lembrar
do que prometera.
Não me dei por achado, entrei logo na jogada:
– Sabes o que é que isso quer dizer?
– Sei, mas, pelo amor de Deus, deixem-me viver, juro que não
torna a acontecer. Foi um descuido da minha parte, nunca pensei que
fossem remexer no lixo.
– Quantos frascos tens ainda? – indaguei eu em voz baixa.
– Três.
– Onde?
– Vou dizer-te mas em forma de enigma, como mandam as
regras: “Gentes corajosas que andaram por África, ao entrar na
primeira palhota se esqueceram dos seus haveres. Debaixo da primeira
pedra está o que eles tanto procuravam”.
Porra, pensei eu, isto já está a ficar pior que o Código Da Vinci.

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2007-01-10

Os caros leitores já deram, decerto, pela minha falta, hoje. Tenho
boas razões para só agora ter encontrado vagar para continuar com
este relatório. Antes, porém, de começar a contar o que já consegui
avançar nas minhas investigações sobre a tintura em geral, devo
terminar o relato do dia de ontem que deixei em suspenso depois da
resposta inesperada do JSS sobre o paradeiro dos três ou quatro frascos
que, segundo parece, lhe estavam confiados. Perguntei-lhe, a seguir:
– E como estão eles?
– Cheios de tintura, claro. Juro que foi por motivo de força maior
que eu usei a tintura do frasco que deitei fora. A culpa foi da sarna que
eu tratei com a tintura, a minha e a do meu cão.
– Mas pura?
– Não. Deus me livre, ter-me-ia queimado o corpo todo, nem
imaginas como eu estava, pergunta ao Manel da tasca que ele te dirá.
Já nem o tinto me tirava a comichão e eu não conseguia pregar olho à
noite. E o cão também não.
– Onde está ele, agora?
– Deve estar lá em casa à minha espera.
– Tem comida?
– Nem convém que tenha. Ele que apanhe os ratos que há lá com
fartura.
Depois desta conversa lá fui comprar uma garrafa de vinho tinto
corrente para o JSS, despedi-me dele e saí. Claro que num meio tão
pequeno, ter-me-ão visto por lá, e alguém terá estranhado que eu tenha
amizades tão, tão, como direi… tão peculiares! Estou-me nas tintas,
melhor dizendo, nas tinturas.

Confesso que também dormi mal à noite. Mas não foi por causa
da sarna nem do pé-de-atleta, mas sim por causa do enigma do JSS.
Claro que a ajuda dos leitores tem sido preciosa, a hipótese do
Monumento às Descobertas de Belém, colocada pela bluegift, é de
ponderar. Mas até que ponto ele, o pobre do JSS, ter-se-ia dado ao
trabalho de ir tão longe para esconder os frascos? Teria sido um local
excelente e insuspeito, sem dúvida. Mas primeiro irei procurar em
Leiria, onde talvez encontre algo semelhante às Descobertas de Belém.

Hoje, apenas me dediquei à investigação livresca, fui a uma
palestra sobre a obra de Adam Smith, A Riqueza das Nações,
constituída por vários livros (salvo erro, seis) em que o autor traça uma
filosofia democrática da riqueza, completamente oposta à filosofia da
tintura de iodo hoje em voga. Adam Smith foi um humanista e
mandou queimar tudo o que escreveu (creio que já depois de morto)
para evitar que dessem uma interpretação parcial e deturpada daquilo
que defendia, como muitos adeptos da filosofia da tintura acabaram
mesmo por fazer, com rótulos de esquerda ou de direita.
Creio que, para poder dar seguimento às minhas investigações,
vou ter que ler a obra, melhor dizendo, a “sobra“ de Adam Smith.

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2007-01-10

Tendo já começado a ler alguma coisa sobre o tio Adam Smith,
que nasceu na Escócia e foi baptizado em 1723 na cidade de Kirkcaldy,
ou seja, há cerca de 300 anos, pude compreender que ele provocou
uma revolução pacífica contra a política mercantilista, revolução que
apenas agora está a começar em Portugal, depois de nos outros países
já ter havido contra-revoluções e mais revoluções.
Pudera, o tio Salazar, um mercantilista convicto, encheu os cofres
do Banco de Portugal com imensa tintura de “ouro”, mas os tios que se
lhe seguiram têm transformado a tintura em casarões, palacetes e
carrões, ao mesmo tempo que tentam aplicar as teorias deturpadas do
Adam Smith, eliminando a influência nefasta do Estado nos seus
negócios. O problema é que Portugal tem cerca de 200 anos de atraso
(o livro só foi traduzido para Português há pouco tempo) e entretanto
as ideias de Adam Smith, considerado o pai da tintura, já estão de tal
modo ultrapassadas pelas de outros tios que, derrubado o
mercantilismo a 25 de Abril, fez-se em 30 anos todas as revoluções em
atraso, do comunismo ao neo-liberalismo, fase em que estamos neste
momento bastante empenhados. Digamos que conseguimos acertar o
passo com as revoluções mundiais. Noutros campos continuamos
atrasados, só agora é que se irá implementar o controle de natalidade
por meio do aborto, quando esta política já se mostrou desastrosa
noutros países mais avançados como é o caso da Alemanha e do
Luxemburgo que dão agora subsídios chorudos a quem parir, e
protegem convenientemente a maternidade. Aqui as pessoas discutem
ainda se se deve ou não despenalizar o aborto, mas ninguém quer
saber do abono de família ou do alargamento da licença de parto para
18 meses em vez de um mês como agora se pratica lá fora.
Alargamento da licença de parto para 18 meses? Credo, homem, você
quer dar cabo do negócio das creches em que muitos tios e tias
apostam? E em que se maltratam e traumatizam os bebés que não
foram abortados?

 

Henrique Sousa

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