Simplicíssimo

Aurora (XXXVII)

XXXVII  

 

          Aguçastes a imaginação, e habitastes assim o não-lugar.

 

 

Chegamos a Avignon quando o Concílio já contava com um dia e meio. Assim como Barton havia previsto, os sicários sequer nos perguntaram os nomes, nos indicando um salão no qual alguns diáconos nos fizeram as honras e nos encaminharam para as instalações do segundo andar, dizendo que as discussões continuariam na manhã seguinte e que desta forma teríamos tempo para renovar as forças na ceia e no sono.Entramos primeiramente num pátio que levava ao prédio principal da sede, com alguns portões encimados por ameias que cobriam todo o entorno da construção, indo morrer junto a um paredão de pedra cinza que formava um dos lados de um abismo que ia até um grande rio de águas mansas, pude ver pela janela de uma das salas.

Alguns cavaleiros controlavam as entradas, mas me pareceu que o faziam de maneira displicente, pois até mesmo eles sabiam que estavam ali mais por uma questão de formalidades, afinal, protegiam monges e religiosos de todas as partes do mundo que chegavam com suas comitivas de outros homens igualmente santos e perigosos apenas nas palavras, diante das quais as armas imperiais pouco poderiam fazer.Havia corredores circulares dentro de outros corredores maiores, uma infinidade de portas de batentes de verniz alinhadas como dentes perfeitos, como se, de alguma maneira, sorrissem para nós, por amizade ou vileza, quando a luz lhes atingia obliquamente nos fins das tardes. No primeiro dia subíamos uma escadaria de pedra branca e, em sua terceira curva, adentramos um amplo salão de portas de vidro que resguardava em suas paredes algumas armas antigas, assentos de veludo impecável, escrínios e candelabros enormes, mas sem velas.Nos quartos havia camas e cômodas de madeira cobertas por arranjos de florais com galhos secos, ramos e bagas perfumadas.

Nas paredes dos dormitórios, vitrais que hoje, ao relembra-los, me parecem venezianos filtravam as luzes naturais tão suavemente que até mesmo um febril poderia olhar para elas e se acalmar.Mais tarde fomos até o salão de discussões, um verdadeiro refúgio de janelas semicirculares, espelhos equilibrados em estruturas espiraliformes que se fechavam conicamente no alto perto do teto; antes dos lustres que, juntamente com os candelabros e outros lumes, davam a vida e a beleza ao ambiente.A lareira possuía altos relevos em formas santas, passagens bíblicas em latim e dava de frente para a arcada de cadeiras almofadadas, dispostas em dez fileiras de dez cadeiras divididas simetricamente pelos quatro cantos do auditório centrado por um púlpito que possuía a sua esquerda a imagem em madeira de uma criança com vestes elegantes que segurava uma bacia de barro na qual o orador ou discursante do momento pudesse lavar as mãos antes de tocar na Bíblia. O salão dava para o abismo que resguardava o torreão central e seu denso ar poderia causar náuseas antes mesmo da visão da queda pedregosa que nas janelas se anunciava como se fosse infinita, mas que na verdade acaba a uns cem metros de queda livre nas rochas da margem do calmo riacho que ali vagarosamente corria. Era suntuoso, mas não como sonhei que fosse; e já na primeira noite, quando dormia incógnito dentre os noviços franciscanos, Rinaldo, puxando a barra de minha túnica, me acordou aos sussurros.

“- Vamos, acorda! Não vens à reunião?”

“- Reunião? A esta hora… estais sonhando, volta a dorm…”

“- Venha logo, que te apresentar aos outros.”

Fiz silêncio, abanando da face o que ainda me restava dos sonhos.

“- Não queres ajuda para salvar teu irmão destas masmorras? Pois, então venhas logo, e não faças barulho!”

Percebi então que, enquanto eu admirava as belezas internas da sede papal, Rinaldo tratara de descobrir uma pequena fenda dentre os tijolos do torreão da biblioteca da abadia, onde combinara de se encontrar, à noite, com os outros noviços que lhe eram tão devotos.O lugar era apertado para todos, cerca de dez noviços, que traziam uma única vela para iluminação e cochichavam entre si algo como: “- Então é ele o assassino do herdeiro do império? Mas veja, é monge como nós…”

Rinaldo havia se encarregado de formar seu pequeno exército e coloca-los a par de minha missão, que agora era também a deles. Ficamos ali o tempo de vida da vela, e voltamos aos quartos um a um, mais incógnitos do que chegamos. As noites assim passaram e, passo a passo, discutíamos onde deveria se localizar as masmorras, cada um trazendo informações novas que conseguiam, a muito custo, levantar entre os mais velhos. Durante os dias, as lições de Barton no navio me serviram para despistar as atenções que eventualmente se voltavam para nosso pequeno grupo franciscano, e usava minhas técnicas do discurso multifacetado e minhas habilidades de reação para ser educado, mas esquecível no exato momento do término da conversa, culto, mas não prepotente, amigável, mas não intrusivo, infantil como cabe a um noviço infante, mas não imaturo. 

Durante nossas reuniões naquela gruta, cuja entrada fechávamos sempre com um dos lençóis da guarda imperial, maquinávamos não somente acerca da libertação de Alermano, assunto no qual sempre tomava a frente e agia como um líder entre os pequenos, mas também sobre outros assuntos, comuns entre noviços de fértil imaginação imersos na entediante rotina monástica, como também me alertara Barton. Quando os assuntos se desviavam a estes respeitos, Rinaldo tomava as discussões para si, e conduzia os dizeres entre histórias reais e fábulas de maneira tão maravilhosa para uma criança que ambas as coisas pareciam ser uma só. Eram relatos e descrições detalhadas daquilo que lera em alguns livros proibidos, e algumas vezes revelava de dentro de sua túnica alguns volumes destas obras e os fazia passar de mão em mão, e os outros, admirados com a única vela a iluminar aquelas páginas, pareciam entrar em espírito dentro dos livros de Rinaldo, perguntavam sobre as maravilhas do Ocidente, se havia realmente mares tropicais onde pássaros cor de anis sobrevoavam as ilhas e penínsulas, se existia uma terra chamada Do Fogo, onde cresciam as folhas das quais se poderia extrair uma bebida mais agradável que o vinho e que os nativos daquelas bandas chamavam dos mais variados nomes e usavam também como ungüentos para diversas moléstias dos trópicos; se, na verdade, não existiam igrejas no Ocidente e que os nativos celebravam seus rituais circundados por construções de traves e tetos de madeira perfumada vinda da Terra do Fogo e arranjadas ao redor de comunidades que celebravam a vida evocando a chuva através de danças e canções. 

Rinaldo, aguçando a imaginação, dizia que algumas sociedades de nativos do Ocidente possuíam ervas que incitavam visões ao se olhar através das chamas de suas fogueiras e podia-se ver pirâmides negras encasuladas em teias de aranhas gigantescas que apenas habitavam suas florestas, e através destas pirâmides compreendia-se o movimento das estrelas, do sol e da lua, e assim sempre sabiam quando e onde deveriam fazer suas plantações para que as provisões nunca lhe faltassem.Alguns beneditinos traziam antigos tratados e manuscritos de eruditos queimados pela Inquisição que haviam subtraído das bibliotecas de suas abadias de origem, estudos botânicos sobre as mais variadas formas silvestres e seus perfumes balsâmicos, mapas geográficos que retratavam o mundo como um tabernáculo que começava em Constantinopla e terminava na Armênia; canções das costas da Apúlia e de Veneza que faziam corar até mesmo o mais ardiloso dos pilantras; um carmelita francês trouxe desenhos e versos de artistas latinos que se voltavam à adoração do álcool, do éter e da graça indolente de meretrizes tão belas quanto o cristal de Bizâncio; e outros ainda, traziam cartas de jogos das tabernas parisienses onde figuravam mulheres nuas, retratos de paisagens e animais prodigiosos, algo como baleias com o coração do lado direito do peito capazes de engolir navios sem ao menos regurgitar, pombas aveludadas e rinocerontes cavalgados por habitantes dos vales africanos. 

Contávamos o quanto gostaríamos de liderar exércitos em guerra e saquear as cidades dos pagãos, como em Sodoma e Gomorra, e levar para o tesouro de nossas terras todo e qualquer relicário que se amontoava naquelas terras distantes e desconhecidas.Dos tratados de medicina, narrávamos moléstias horríveis e descrevíamos quais órgãos as flechas haviam trespassado em São Sebastião; qual a dor de Santa Agatha que teve os seios arrancados pelos hereges, qual o martírio de Santo Estevão, que teve o crânio destruído por pedradas, qual o suplício de Santa Luzia, que teve os olhos arrancados e qual o lento sofrer de São Lourenço, queimado na água em fogo brando.Por fim, tentávamos entender como o Universo era rico de especiarias e de perfumes extenuantes, e como nunca os tivéssemos conosco, tentávamos também descobrir, através das descrições botânicas, como eram seus gostos e odores, e citávamos os incensos que se queimavam da manteiga de leite de cabra, o gosto do açafrão, do gengibre, do estragão, do cravo-da-índia, da noz-moscada, do cominho e da erva cidreira. 

Lembro-me que na época do Concílio, pensava que tais reuniões, quando enveredavam por tais assuntos, me seriam inúteis no resgate de Alermano, mas agora percebo que me foram vitais. Era necessário que nos aproximássemos, como verdadeiros irmãos que celebram seus desejos e anseios de infantes sem preconceitos, criamos uma espécie de confiança mútua através daqueles curtos encontros noturnos, despertamos conjuntamente o desejo de descobrir, de alcançar o impossível, de desatrelar do absurdo a utopia de arrancar nossas almas da suposta retidão católica, enfim, de fazer valer uma vida cujos dias passavam como que insatisfeitos e de preencher nossas personas com um mundo não nos seria mais intangível no qual o bem e o mal seriam complementares até a sua epifania, e no qual padecer no paraíso não fosse um sonho, mas um conjunto de experiências suaves que, somente através de nossa própria voz, poderiam ser decifradas e aproveitadas. Foi tal impulso, único verdadeiro em toda minha vida, gerado durante aquelas noites em Avignon que me permitiu fazer de pensamentos, realidade, e que permitiu também a todos os outros criar a coragem de nos enveredar pelos corredores labirintísticos da sede católica a caminho das masmorras.

Rodrigo Monzani

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