Simplicíssimo

O Marquês (VII)

“- Ninguém pode reinar inocentemente.”
Saint-Just (1767 –1794)

Granier sentia-se forte. Ele acreditava na coragem unida à inteligência, e foi a isso que chamou de força. Mas, em seu nome, colocou a coragem contra a inteligência, e essa virtude, que foi realmente a dele, transformou-se no seu contrário: a violência cega. Will confundira liberdade com solidão, talvez devido à lei de seu espírito altivo, talvez devido a sua genialidade, que o levava ao desprezo. Aquela sua solidão das cavernas a meia-noite perdeu-se, entretanto, para dar lugar a uma solidariedade social mecanizada, dentro das multidões mecanizadas que afloravam na cidade dos ventos depois da guerra.

A mecanização social deveu-se a um homem e a milhares de ceifeiras mecânicas em seu nome. Bradford Allan Greenwood criou sua doutrina, a do super-homem levado à fabricação de sub-homens para seu trabalho de colheita, mas talvez o fato que deva ser denunciado a seu respeito seja sua personalidade. Em maio, um ano atrás, sua filha havia sido assassinada num celeiro abandonado, estrangulada enquanto cortava maçãs, por um desconhecido sem rastro. Seu corpo ficara no mesmo celeiro até à noite, perto de uma plantação de rosas a meio caminho entre a Cidade dos Ventos e a Vila do Ópio. O camponês que a descobriu ficou tão perturbado que, ao comunicar com voz trêmula à vila aquela sua visão, disse que nunca tinha visto algo tão belo em toda sua vida, quando naturalmente queria dizer que nunca tinha presenciado tamanho terror. Suspeitava-se que o assassino fosse jovem, pois as marcas no pescoço da garota eram de pequenas mãos, nada que pudesse deformar a beleza que ela cultivara em vida.

De fato, a menina era de estranha beleza. Pertencia àquele tipo de mulheres misteriosas, repletas de segredos, suaves e doces que com um gesto, um menear de cabelos e suaves olhares permanecem quietas como no centro de um redemoinho, aparentemente inconscientes da sua própria força de atração com a qual arrastam irresistivelmente as almas e os suspiros de homens e mulheres.

Sobre seu assassino, suspeitou-se dos ciganos. Dos ciganos é de se esperar tudo. Teciam tapetes com o couro de animais mortos para as refeições e costuravam travesseiros recheados de cabelos dos enforcados. De um crime tão perverso, provavelmente um jovem cigano seria capaz, mas depois de algumas semanas a polícia encerrou as buscas.

Àquela época espalhou-se o terror por toda região e as pessoas não sabiam mais contra quem voltar sua raiva impotente. O assassino parecia um ser incorpóreo, inatingível como um espírito. Um negociante de tecidos matou a pauladas seu próprio servente, quando descobriu que esse voltara mais tarde na noite do assassinato e disse que a filha de Greenwood era muito bonita. Um lutador de boxe clandestino, famoso pela sua força e por possuir mãos muito pequenas, foi massacrado por uma multidão que assistia sua luta quando esta soube das diminutas mãos que o assassino da garota deveria possuir. Assim, o conselho da cidade, um grêmio dos vinte nobres, liderados por Greenwood, em sua maioria loucos e anti-clericais que até então tinham deixado de lado a ajuda da Santa Madre Instituição e prefereriam transformar as abadias e mosteiros em depósitos de riquezas e bordéis, solicitou, nesse estado de quase calamidade, numa petição redigida em termos muito humildes pelo próprio Greenwood que o bispo se dignasse a amaldiçoar e banir o monstruoso assassino da face terrena, já que os poderes terrenos já não conseguiam controlá-lo, assim como o mesmo bispo amaldiçoou a peste de vermes e parasitas que assolou as plantações anos antes, fato que servira de remédio para a insatisfação popular.

Antes, porém , da ação religiosa, veio a guerra, mas havia um homem na Cidade dos Ventos que não esqueceria. Mesmo agora, um ano após a morte de uma de suas filhas, Allan Greenwood arquitetava sua vingança.

Allan era viúvo e a imagem que guardava da mulher era iluminada por um desfile teatral de antigas alegrias e saudade. Sem a primogênita, sua família agora resumia-se a Verlag, seu único filho homem, e Terye, a caçula e a razão principal de seu afeto. Desde a morte de Valerie, às noites ele tremia de agitação, não, não de agitação, mas de medo: finalmente havia reconhecido que o puro medo havia tomado conta dele e, admitindo isso, poderia pensar com a cabeça mais desanuviada e calma. Com toda honestidade, reconheceu que no início não acreditara que o assassino de sua filha fosse um louco, ou um cigano, ou que a maldição do bispo, se acontecesse, surtiria algum efeito prático. Allan lembrava do corpo de sua filha, a visão do reconhecimento o havia revoltado, mas como deveria reconhecer, o havia também fascinado. Somente quando morta, ele percebeu a cândida beleza da menina, e por um momento inexplicável, pensou no assassino como um artista, pois a escolha de sua vítima, agora percebia ele, não havia acontecido ao acaso, mas sim seguido um planejamento. Obviamente Allan não sabia exatamente o que o assassino desejava de Valerie, pois o melhor dela, sua juventude e beleza, ele não poderia… ou será que poderia levar? Enfim, pela primeira vez, ao pensar friamente, o assassino não lhe pareceu um espírito totalmente destrutivo. Passou a imaginar a vítima como um indivíduo isolado e como parte de um plano mais elevado, e, somente raciocinando de um modo idealista, Allan percebeu que Valerie não seria a única vítima, mas apenas uma parte de um todo. E ao cabo de seu plano, mesmo que tudo fosse fantasia de sua mente doentia, o assassino teria alcançado sua meta principal, o assassinato de ouro sobre o qual girariam todos os outros assassinatos acessórios. Por isso, as próximas vítimas teriam necessariamente alguma ligação com Valerie, seus outros filhos talvez, e, por Deus, ele mesmo, Allan, seria a terrível conclusão.

Seria preciso mudar sem rastros de cidade, trancafiar-se em mosteiros distantes e passar correntes nos portões de ferro que os isolariam do mundo. Não andaria à noite e seus filhos permaneceriam sempre acompanhados por atiradores que ele mesmo selecionaria por confiança, mas estas medidas lhe pareceram paliativas e consequentes de um espírito volátil, covarde e fraco. Allan desejava o assassino tanto quanto o assassino o desejava.

Enquanto lhe chegavam estas conclusões, Allan permaneceu sentado na cama, admirando-se de sua própria calma. Não mais sentia frio, nem tremia. Desaparecera a angustia que a meses o assolava, dando lugar à consciência de um perigo concreto: o sentido e a ação do criminoso estavam muito claramente direcionados para seus filhos e para ele, desde o começo. Não sabia o motivo, vingança de um de seus empregados agora sem emprego devido às ceifeiras, talvez, mas o essencial, o modo sistemático e o motivo ideal do assassino, isso Allan percebera, e quanto mais pensava, mais suas conclusões lhe pareciam acertadas e maior se tornava o respeito que tinha pelo assassino, um respeito que somente se permitia pois se refletia nele prórpio, Allan, como num espelho plano, pois de qualquer modo fora ele quem descobrira e decifrara as intenções e captara a aritmética do adversário.

O fato de poder se colocar a frente do assassino de sua filha, desvendando suas regras de ação, agradou a Allan de modo especial, pois isso, apesar de toda inteligência do criminoso, o colocava numa posição bem superior a dele. Agora sentia-se melhor, depois de ter conseguido reduzir as cogitações noturnas relativas à luta contra este demônio ao nível da disputa racional, fria e cogitativa. Desapareceram os últimos restos de medo, e a sensação de desalento e de aflitiva preoupação que o haviam torturado como a um velho trêmulo e senil dissiparam-se em suas sombrias suspeitas. Sentia que agora não mais se movia às apalpadelas no escuro, e em condições de enfrentar qualquer desafio, um desafio criminoso que somente poderia ser travado na névoa da sociedade igualmente criminosa que despontara no pós-guerra.

Rodrigo Monzani

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